Dias atrás em uma roda de amigos entre cervejas e risadas surgiu o assunto da transexualidade; refletindo, percebemos que essas pessoas não fazem parte de nossa vida cotidiana. Quando eu falo cotidiana, me refiro a participar efetivamente em: almoços, festas de aniversário, rolezinhos de bares e afins.
Nós não convivemos com pessoas trans. E isso é uma entre as muitas das estratégias que o Estado, a mídia e tudo aquilo que pauta e organiza nossa socialização, criou para que a gente não convivesse com pessoas trans./travesti; isolando-as, mostrando que o lugar delas são os piores: HIV, promiscuidade, drogas, problemas psicológicos, pessoas violentas (vide a história da navalha – “não chegue perto delas, travesti andam com navalha”), prostituição.
Renata Carvalho, uma atriz transpóloga*, disse recentemente em uma entrevista que existe a transfobia estrutural e ela ressalta que quando falamos de estruturas significa que fomos ensinados, que crescemos aprendendo: a não gostar, a rir, a masculinizar, a não ter por perto e principalmente, ter medo.
Quando falamos em travesti, é nisso que pensamos: pessoas da noite, que ficam na esquina, “rodando bolsinha”, debaixo de um poste de luz amarela piscando e ela rezando para não queimar porque pra ela comer, ela precisa ser vista. A exclusão faz parte da construção da identidade travesti desde o dia que esse corpo se torna visível para a sociedade.
Mas eles também não dizem que as pessoas trans./travesti além de todo o espancamento moral, são as que mais morrem no Brasil. Todos os dias. Elas são isoladas pelo Estado, que recentemente começaram um movimento de criação de políticas públicas, por exemplo, como se pessoas trans./travesti começassem a “surgir” agora, depois que “a novela mostrou” que elas existem.
Não bastasse o Estado e a sociedade, elas também são isoladas por nós LGBTs, que não fazemos esse tipo de pergunta, que vivemos num mundo binário (ou é homem ou é mulher). Ou então que identificamos travesti como homem afeminado. E não é isso. Também não somos educados a pensar assim, a questionar assim.
Essas questões me vieram à tona quando pude conhecer uma travesti, no final do ano passado, que veio para mudar e quebrar todos os paradigmas que eu carregava sobre ter/ ser amigo de pessoas trans./travestis. Esta hoje se tornou uma grande amiga, tão amiga que costumo chamá-la de filha, carinhosamente. E com isso começou a fazer parte da minha vida efetivamente.
Apesar disso, ela passou por vários momentos de transfobia dentro da minha casa: um lugar que eu acreditava ser o mais seguro para receber todos meus amigos LGBTs. Desde piadas sobre seu corpo até dúvidas sobre a sua travestilidade. E esses acontecimentos trouxeram essas reflexões acerca destes corpos tão marginalizados e oprimidos pelo sistema heternormativo patriarcal.
Tenho certeza que o que me fez pensar nisso foi a militância. E mais do que “ah, você é daquela galera dos direitos humanos, do politicamente correto, ‘descansa militante’” e tantas outras frases que querem nos reduzir e silenciar. Compreendo que o papel da militância é o de intervir diretamente a favor de qualquer discriminação, sobretudo se uma destas pessoas forem aquelas que compõem as letras da diversidade. Porque quanto mais nós mudamos de classe social e econômica, começamos a circular em espaços elitizados – como a universidade, por exemplo – menos a gente convive com essas pessoas.
A transfobia está dentro de nós. É um papel nosso inverter isso. Se essas violências sistemáticas acontecem por décadas e, ainda assim, em pleno 2020, não conseguimos ver como “normalidade” as amizades entre pessoas cisgêneras e pessoas trans/travestis, é plausível afirmar que isso ainda é uma problemática estrutural e que cabe a nós enquanto sociedade repensar essas relações de afeto e amizade.
* Transpóloga: terminologia usada por Travestis e Transexuais que estudam seus corpos e os corpos trans na sociedade. Equipare-se a palavra antropóloga.